Uso indiscriminado da tecnologia pelo Estado é tema de tese de Mestrado de professora da Funcesi

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A professora Ely Candida, que também é avogada no SAJ / Unifuncesi, disse que não tem lei específica que trata do uso da tecnologia nas ações penais

Vivemos, definitivamente, em um mundo digitalizado. O avanço da tecnologia nos impacta em todos os âmbitos sociais, e no Direito isso não é diferente, uma ligação que exige muitos cuidados. A moderna reflexão, pouco debatida no Brasil, foi tema do mestrado da professora do Centro Universitário Funcesi Ely Cândida. Além da aprovação, a pesquisa inovadora rendeu convites à docente para tratar sobre o tema em livros.

Dra. Ely Candida questiona a invasão indiscriminada da vida do cidadão com a tecnologia para a ação penal do Estado.    Foto: Thiago Sales

Em sua dissertação, Ely questiona o acesso do Estado e das forças policiais, por meio da localização on-line de cada indivíduo, aos dados privados da população para fins de investigação. Segundo ela, a partir da identificação dos locais por onde cada sujeito transita, é possível traçar um perfil completo de qualquer pessoa. No entanto, tamanha “invasão” se choca, inclusive, com um dos artigos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

“Temos um princípio que se chama o princípio da inocência. Quando você dá um aceite para as empresas terem acesso e te ofertarem bons serviços, você não está dando essa autorização para o Estado, ou para a polícia te investigar. Não temos nenhuma legislação sobre isso. A gente tem a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), mas que regulamenta as esferas civil e empresarial, totalmente diferentes da penal. Inclusive, o artigo 4 da Lei Geral de Proteção de Dados deixa claro que deve existir uma lei específica para regulamentar esses dados para fins de tratamento pela segurança pública, para persecução penal. E essa lei nunca foi criada”, explica a professora de Direito Penal da Funcesi.

Um exemplo claro dessa discussão, diz Ely, é o caso Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em 2018. Uma investigação emblemática cuja resolução ainda parece distante.

“Eles não sabiam quem eram os autores do crime e não havia nenhuma pista. Então, quebraram os dados de localização de todo o trajeto, desde que ela saiu de casa até o local do assassinato. A polícia foi até o judiciário solicitando os dados de localização das pessoas que passaram nesse tempo e espaço traçado e, naquele momento, todas elas estavam sob investigação. A partir daí a polícia começa a investigar fazendo outros filtros. Só que os dados de localização são os dados mais sensíveis que uma pessoa pode ter. Por meio deles, eu sei os locais que você frequenta, vejo as suas relações familiares. É muito grave”, acrescenta.

Para além das investigações policiais, a discussão pode acarretar outros problemas. A maioria deles, afirma a professora e advogada, tendo como alvo os grupos considerados minoritários.

“Nos Estados Unidos, alguns estados autorizam o aborto. Então, a mulher que quer abortar vai naquele Estado que permite o ato. Porém, protestantes que são contra o aborto fazem um cerco digital. Quando a pessoa volta para casa, denunciam e a pessoa é presa. Pessoas que passaram pelo sistema carcerário vão ser alvo. Você está investigando um crime, são 200 pessoas. Quem vai ser o alvo que a polícia vai começar a filtrar a partir dele? Tudo isso a partir apenas dos dados de localização, que me permitem traçar o seu perfil inteiro. E aí é que começa o conflito da investigação com a privacidade de cada pessoa”.

O estado norte-americano, aliás, já avança de forma mais profunda no tema há algum tempo, ao contrário do Brasil. A ponto de Ely se ver obrigada a recorrer apenas a materiais internacionais para construir sua dissertação.

De acordo com ela, embora cada estado tenha uma definição diferente sobre a discussão, o mais alto tribunal federal dos Estados Unidos considera a prática inconstitucional.

“No dia 4 de agosto a Corte Superior dos Estados Unidos entendeu que a prática é inconstitucional, pois é muito grave. Porque por meio dos dados de localização é possível colher informações como nome, filiação, religião, orientação sexual, entre outros. É claro que a segurança pública é imprescindível como proteção à sociedade, isso é inquestionável. Mas até quando vai esse limite?”, questiona.

O mestrado de Ely foi feito na Faculdade de Direito Milton Campos, em Nova Lima. Além de prestar apoio jurídico à Funcesi e lecionar no centro universitário, a professora advoga desde 2009. Formada em 2008, Ely também integra o Conselho de Ética e Disciplina da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Vespasiano.